Dizem que, no final da vida, a pessoa se despoja de suas cerimônias e tende a virar criança de novo.
Pode ser.
Meu avô, vez por outra, parecia estar na flor da infância, a despeito dos cabelos brancos que ele penteava para trás com gomalina (inclusive quando estava em casa).
Como se a existência precisasse ser cíclica, e o fim encontrasse o início tal qual uma cobra que morde o próprio rabo, a experiência da velhice levou meu avô a reviver a simplicidade dos seres mais inexperientes, para quem qualquer dado é novidade e desperta uma doce surpresa.
Ele gostava de pescar e de contar piada. Gostava de beber água de coco e de palitar os dentes à mesa após as refeições – hábito um tanto mal educado, na avaliação de minha mãe, diante do qual ela o repreendia com um exclamatório “Papai!”, no mesmíssimo tom usado para ralhar comigo e com minhas irmãs.
Mas ele gostava muito era de passarinho. Olhava os bichinhos com fome nos olhos, fome de engolir a beleza daquela imagem. Quando passava uma revoada de maritacas sobre as árvores mais altas da casa, ele interrompia qualquer afazer para se admirar com o grito alto delas, e apontava, genuinamente feliz: “Olha as maritacas!”. Prendia casinhas de madeira pelas paredes, torcendo para que os passarinhos construíssem ninhos dentro delas, de modo que os passarinhos habitassem também a sua casa velha, musicando o ar como convidados ilustres.
Certo dia, meu avô entrou no salão para jogar comigo uma partida de totó. Durante o jogo, ria um riso fácil e macio, riso de quem se diverte, riso de criança brincando – mas criança em casca de velho. A disputa se acirrava e o placar, apertado, evoluía cabeça a cabeça. Ele achava graça, ria mais e mais. Chegamos no nove-a-nove e no vai-a-dois, meu avô já com a respiração ofegante, eu imersa na briga como se valesse a taça de um campeonato mundial. Até que ele desabafou, numa gargalhada: “Chega! Para mim não dá!”. Meus olhos se arregalaram incrédulos: “Como assim, vô?! No nove-a-nove?!”. Ainda risonho, ele levou a mão ao peito: “Para mim não dá! Meu coração não aguenta, minha filha!”. E aquele jogo que joguei com meu avô permaneceu, para sempre, inacabado.
*Foto: Camila Faria
oi Fe,
ResponderExcluirParece que estou ouvindo o papai falando...que saudade...seu texto me emocionou muito...
Bjs carinhosos, tia renata
Também adorei, irmã. Pra variar você me deixou em prantos, mas por um bom motivo - é o resgate de uma beleza e uma ingenuidade que às vezes a gente deixa se esvair das nossas vidas... obrigada por isso!
ResponderExcluirBjs.
Duda
Que coisa mais linda Nanda, estou com os olhos cheios d'água!
ResponderExcluirMila Faria