quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ESPELHO


Na casa velha do meu avô costuma fazer frio. Pensando que está em Petrópolis, a casa gosta de se enfeitar com uma bruma elegante de inverno. Só para fazer charme.

De modo que, antes de tomarmos uma chuveirada, costumamos acender o antigo aquecedor a gás disponível em cada banheiro. O cheiro de fósforo queimado perfuma o ambiente pelos minutos seguintes, fazendo companhia a quem se sente só dentro do box transparente. E assim felizmente podemos nos derreter, lânguidos, sob um relaxante jato de água quente.

A não ser no banheiro do vovô Guilherme.

Fora da casa principal, no anexo situado nos fundos do terreno, jaz o lendário banheiro do vovô Guilherme, pai da minha avó, lembrado por ela com muito carinho. Ali a ducha é sempre gelada, porque cai diretamente de uma caixa d’água, por um sistema arcaico de roldanas que abrem e fecham o cano do chuveiro. Nenhum chuveiro que eu tenha visto na vida funciona assim, como o do vovô Guilherme.

Dizem as boas línguas que, nos dias de julho, castigados por temperaturas inóspitas, o heróico vovô Guilherme se banhava implacável no banheiro gélido. E ainda bradava seu lema aos incrédulos: Acostumado ao banho frio, o sujeito não pega gripe nem resfriado!

Quando eu era adolescente, gostava de tomar banho no banheiro do vovô Guilherme. Empenhada na minha convicção ética de que era preciso contrariar a tudo e a todos, me negava a fazer fila à porta dos banheiros quentinhos – onde o vapor embaçava o espelho, o que, na infância, possibilitava a brincadeira incidental de assinarmos ali nossos nomes com o dedo indicador. Na adolescência, ávida por aventuras, eu preferia encarar a temível caixa d’água guilhermina.

Abria o chuveiro já aos saltinhos intervalados, a fim de aquecer o corpo para suportar a corrente de gelo líquido que me lambia, impiedosa, da cabeça aos pés, desbravando as raízes do meu coro cabeludo e alfinetando toda a superfície do meu organismo juvenil.

Na hora de me enxugar, o coração acelerado, mirava minha ofegância no espelho redondo que se mantém na parede do banheiro há gerações, e que tantas vezes devolveu ao vovô Guilherme a imagem do seu rosto revigorado e molhado. Um espelho manchado pelo tempo. Uma passagem secreta para a memória de um estranho familiar, de cujas células me formei, de cuja existência derivei, sem o qual não haveria eu.

*Foto: Victor Urzua