sexta-feira, 30 de julho de 2010

ARCO-ÍRIS

Como eu lhe dizia, minhas avós eram amigas desde os tempos de escola.

Minha avó paterna, célebre por seu generoso talento para a sociabilidade, gostava de oferecer presentes especiais às pessoas. Quando tomou conhecimento de que meu avô materno havia construído um salão de jogos em sua casa velha, ela foi até uma loja em Copacabana e voltou com uma placa que garantia às crianças a posse definitiva daquele terreno valioso. Éramos oito netos, uma mesa de totó, uma de ping pong, outra de sinuca, um baú de fantasias e um número irrestrito de brincadeiras tarde afora. A escritura ainda está pendurada à entrada do local, legislando: “Este um território livre, onde reina o amor, a bagunça gostosa, os riscos, rabiscos e toda a sapequice do mundo infantil.”

No baú do salão, cabiam princesas, guerreiros, bruxas, piratas, uma quantidade interminável de personagens que brotavam da combinação de panos e troços manipulados por nossa imaginação astronauta. Montávamos peças teatrais e musicais. Sentávamos os adultos na plateia e passávamos o chapéu, para depois correr até a loja da esquina e comprar uma montanha de balas.

Eu, que era alérgica, sofria com a poeira acumulada nas roupas que quedavam mais ao fundo do baú. Certa vez, entre espirros, encontrei um vestido mágico. Ajustava-se ao corpo como um collant de bailarina, de onde brotavam lenços multicoloridos que, unidos, formavam um arco-íris translúcido. Fascinada, precisei apenas vesti-lo para me deixar invadir por um sentimento profundo de felicidade.

Tornei-me eu mesma um arco-íris cósmico, capaz de dar cor às coisas do mundo, por meio de um balé dadivoso. Com duas piruetas, lancei-me ao gramado para declará-lo verde, e ele se enverdeceu inteiro, agradecido. Logo em seguida, num salto, concedi o azul ao céu, e a uma borboleta grande e bela que voava por ali, e ambos se azularam, contentes. Depois, sentindo sobre a pele o calor do sol, decidi amarelá-lo de um amarelo luminoso, tão intenso que forçasse o observador a desviar o olhar diante de sua magnitude. Quis fazer marrom o tronco de uma árvore e acabei amarronzando também um calango que ali tentava se esconder. E dei cor a todo o universo em menos de sete dias.

Na verdade, acho que foram apenas sete minutos, porque logo minha mãe me chamou para tomar banho. Contrariada, tive que me despir do arco-íris e me submeter a um ordinário jato d’água incolor.

*Foto: Camila Faria

domingo, 25 de julho de 2010

NASCIMENTO

Muito antes de nascer, fui nascida por outros. Sonharam-me, desejaram-me, conceberam-me, perguntaram-se se eu seria menino ou menina, porque não havia ultrassom naquela época, e souberam que eu seria menina quando minha tataravó de ascendência indígena, do alto dos seus 104 anos de idade, apalpou a barriga da minha mãe e garantiu que ela poderia comprar um enxoval cor-de-rosa.

Nasci numa clínica médica e asséptica, mas preferia ter nascido na casa velha do meu avô. Uma casa que, antes de ter os seus jardins cuidados pelas mãos dele, percorreu sólida os laços pregressos da minha família, de geração a geração, desde meados do século XIX. Até hoje, em cada canto da casa mora um espectro. (Quando criança, eu já sabia disso, o que justificava meu medo de ir ao banheiro sozinha no silêncio escuro da noite, percorrendo o longo corredor de quartos apagados e pisando a madeira rangente da sala de estar - onde mora atualmente, aliás, o fantasma do meu avô.)

Muito antes de nascer, fui nascida nessa casa, pois era lá que minhas avós brincavam, coleguinhas de escola. Brincavam de bonecas, de casinha, "o meu vai casar com a sua", sem saber que um anjo passava por ali e achou divertido transformar a fantasia infantil numa profecia encantada. E poucas décadas depois, naquela mesma casa, o filho de uma se enamorava da filha de outra, e elas duas, de amigas, seriam convertidas em membros de uma só família.

Eu preferia ter estourado a bolsa da minha mãe em pleno chão de taco, causando gritaria entre as minhas tias, acaloradas pelo sangue italiano: "Vai nascer! Vai nascer!". E uma delas sairia correndo para chamar a vizinha, uma senhora idosa e de baixa estatura, que contava com alguma experiência como parteira. Meu avô, embora médico, não teria coragem de manipular o sangue da própria filha. Ele se juntaria aos homens na sala, fumando, enquanto minha mãe gritaria suas dores no quarto azul. Eu chegaria ao mundo com alguma dificuldade, porque há de ser difícil esse momento em que é preciso respirar a vida por si só, pela primeira vez, sem a providência completa e infalível do ventre materno. Mas olharia em volta e veria a casa velha do meu avô, com meus olhinhos apertados de bebê, umedecidos pelo choro inaugural do nascimento. E o anjo viria sussurrar-me ao pé do ouvido: "Veja só, pequenina: nesta casa serão guardados os cacos da sua infância".

*Foto: Carolina Baltar