Na casa velha do meu avô, no lado de fora, o chão de cimento assumia uma função intermediária entre chão-de-casa e chão-de-rua, oportunamente reunindo as vantagens de um e do outro.
Pisando aquele chão de cimento nos sentíamos amparados e a salvo de qualquer um dos possíveis perigos do mundo, constantemente embalados por uma serena sensação de lar.
E pisando aquele chão de cimento nos sentíamos livres para pular corda, andar de bicicleta, jogar bola, brincar de pega-pega, esconde-esconde e esses corre-corres de criança que aceleram nosso coração de uma maneira que, quando adultos, poucas coisas parecem conseguir.
No chão aquecido pelo sol quente de verão, ao sair da piscina, eu pisava descalça pegadas frescas e molhadas. Corria até o galinheiro com a boca cheia d’água e cuspia todo o estoque nas pobres aves inocentes, esguichando o veneno inimputável do meu instintivo sadismo infantil. Outra versão deste pequeno jogo, partilhado alegremente entre os oito netos do meu avô, implicava em movimentos mais sutis, dos quais os alvos eram as formigas que marchavam enfileiradas à beira da piscina, e nos quais as armas eram as pequenas gotas – para as vítimas, terríveis avalanches em estado líquido – que pendiam das palmas de nossas mãos, cinicamente apontadas na direção das coitadinhas.
No chão desenhávamos com giz colorido duas classes distintas de amarelinha, devidamente categorizadas por nossa taxonomia pueril: 1. a amarelinha tradicional, que consistia numa sequência de três retângulos, sucedidos por um bloco de dois, e depois mais um retângulo, e outro bloco de dois, todos numerados de um a oito, determinando quando se deve pular com um pé apenas ou com os dois ao mesmo tempo, finalizando-se no Céu, onde deveríamos retornar para percorrer a amarelinha no sentido contrário; e 2. a amarelinha em espiral, onde os oito quadrados convergem, sob a forma de um caracol, na direção de um Céu central, ao qual o pulante chega após pular com um pé apenas durante todo o trajeto, que também deve ser repetido no sentido contrário. (Costumava me perguntar por que diabos aquela parte final da amarelinha se chamava Céu e me ocorriam explicações que caberiam na boca da minha professora de religião. No fundo, acho que se trata apenas de uma bela licença poética – o que, aliás, sempre vem bem a calhar nas brincadeiras de criança.)
Numa porção de chão próxima ao jardim francês que dá ares aristocráticos à frente da casa, ocupando uma área de cerca de um metro quadrado, há uma linda mandala que sempre me remeteu a princesas perdidas em algum palácio exótico, sequestradas por um xeique malvado fugido de As mil e uma noites, mantidas em cativeiro pela vigilância de uma sinuosa pantera negra. Eu gostava de me sentar ali, naquele pedaço de Oriente em pleno Rio de Janeiro, e confidenciar às formiguinhas – desta vez, minhas amigas – meus sonhos de princesa, elegantemente chorosa e refém, esperando para ser resgatada por um misterioso príncipe árabe, portando um turbante que deixasse entrever nada mais do que seus belos olhos amendoados, e montando a pelo um cavalo arredio e feroz. Para o meu azar, porém, as formigas guardavam mágoas: nem sequer se detinham para ouvir o que eu desejava lhes contar, ocupadas em seu fazer-alguma-coisa eterno. Tão minúsculas, retiravam-se e se vingavam da menina gigante que havia afogado suas irmãs, condenando-a a um retraído solilóquio.
*Foto: Carolina Baltar
Que lindo Nanda! Adorei a idéia e as histórias! Agora a casa se tornou muito mais especial para mim, depois de conhecer um pouquinho mais das suas memórias!
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Beijo, Mila Faria
Oi sobrinha,
ResponderExcluirAdorei as malvadezas infantis com as pobres galinhas e formigas...coitadinhas...
bjs, tia renata