domingo, 29 de agosto de 2010

LUZ

Na casa velha do meu avô, tudo tem cara de coisa velha.

Os móveis são velhos, os azuleijos da copa são velhos, o chão de mandeira da sala é velho e nos lembra disso quando range aos nossos pés. (Se seu ruído se prestasse a alguma espécie de decodificação, certamente traduziria as mais belas histórias que esse chão já suportou e testemunhou.) E entre todos esses tesouros lindamente velhos, que guardam em silêncio mistérios de muitas gerações, estão os interruptores dos quartos de dormir.

São diferentes de qualquer outro interruptor que eu tenha visto, em qualquer outro lugar do mundo. Funcionam por um peculiar mecanismo de gangorra: empurra-se para dentro o cilindro saliente, que se retrai ao mesmo tempo em que o outro se levanta, acendendo-se ou apagando-se a luminária.

Uma das recordações mais arcaicas que mantenho da minha infância é a de esticar todo o meu corpinho, desastradamente equilibrado nas pontas dos pés, e concentrar toda a minha força na extremidade do meu dedo indicador, tentando alcançar e empurrar o maldito cilindro preto. Esse esforço extremo nem sempre era suficiente, de modo que eventualmente eu me via obrigada a apelar para o triste reconhecimento da minha pequenez, buscando uma cadeira onde eu pudesse subir, conformada, para enfim antingir minha meta.

Recentemente, parei por alguns segundos diante de um desses interruptores e me dei conta, para o meu sincero espanto, de que eles não se situam a mais de um metro do chão. Naqueles momentos fatídicos, em que me parecia árdua a simples tarefa de acender a luz, minha altura era inferior à de cem míseros centímetros. E com um metálico sorriso invisível, meu antigo adversário caçoava de mim – uma pobre-coitada resignada à escuridão, buscando refúgio sob um frágil escudo de cobertor, inofensivo contra o terrível bicho-papão que habitava o canto mais sombrio do quarto.

Curiosa ironia: agora que tenho a altura necessária para acender a luz sem problemas, já não sinto tamanha urgência em iluminar o quarto à noite. Afinal, alguns anos atrás, o tal do bicho-papão resolveu se mudar daquele canto sombrio para outro lugar. Sabe-se lá por quê.

*Foto: Carolina Baltar

domingo, 8 de agosto de 2010

SAUDADE

Dizem que, no final da vida, a pessoa se despoja de suas cerimônias e tende a virar criança de novo.

Pode ser.

Meu avô, vez por outra, parecia estar na flor da infância, a despeito dos cabelos brancos que ele penteava para trás com gomalina (inclusive quando estava em casa).

Como se a existência precisasse ser cíclica, e o fim encontrasse o início tal qual uma cobra que morde o próprio rabo, a experiência da velhice levou meu avô a reviver a simplicidade dos seres mais inexperientes, para quem qualquer dado é novidade e desperta uma doce surpresa.

Ele gostava de pescar e de contar piada. Gostava de beber água de coco e de palitar os dentes à mesa após as refeições – hábito um tanto mal educado, na avaliação de minha mãe, diante do qual ela o repreendia com um exclamatório “Papai!”, no mesmíssimo tom usado para ralhar comigo e com minhas irmãs.

Mas ele gostava muito era de passarinho. Olhava os bichinhos com fome nos olhos, fome de engolir a beleza daquela imagem. Quando passava uma revoada de maritacas sobre as árvores mais altas da casa, ele interrompia qualquer afazer para se admirar com o grito alto delas, e apontava, genuinamente feliz: “Olha as maritacas!”. Prendia casinhas de madeira pelas paredes, torcendo para que os passarinhos construíssem ninhos dentro delas, de modo que os passarinhos habitassem também a sua casa velha, musicando o ar como convidados ilustres.

Certo dia, meu avô entrou no salão para jogar comigo uma partida de totó. Durante o jogo, ria um riso fácil e macio, riso de quem se diverte, riso de criança brincando – mas criança em casca de velho. A disputa se acirrava e o placar, apertado, evoluía cabeça a cabeça. Ele achava graça, ria mais e mais. Chegamos no nove-a-nove e no vai-a-dois, meu avô já com a respiração ofegante, eu imersa na briga como se valesse a taça de um campeonato mundial. Até que ele desabafou, numa gargalhada: “Chega! Para mim não dá!”. Meus olhos se arregalaram incrédulos: “Como assim, vô?! No nove-a-nove?!”. Ainda risonho, ele levou a mão ao peito: “Para mim não dá! Meu coração não aguenta, minha filha!”. E aquele jogo que joguei com meu avô permaneceu, para sempre, inacabado.

*Foto: Camila Faria

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

CHÃO

Na casa velha do meu avô, no lado de fora, o chão de cimento assumia uma função intermediária entre chão-de-casa e chão-de-rua, oportunamente reunindo as vantagens de um e do outro.

Pisando aquele chão de cimento nos sentíamos amparados e a salvo de qualquer um dos possíveis perigos do mundo, constantemente embalados por uma serena sensação de lar.

E pisando aquele chão de cimento nos sentíamos livres para pular corda, andar de bicicleta, jogar bola, brincar de pega-pega, esconde-esconde e esses corre-corres de criança que aceleram nosso coração de uma maneira que, quando adultos, poucas coisas parecem conseguir.

No chão aquecido pelo sol quente de verão, ao sair da piscina, eu pisava descalça pegadas frescas e molhadas. Corria até o galinheiro com a boca cheia d’água e cuspia todo o estoque nas pobres aves inocentes, esguichando o veneno inimputável do meu instintivo sadismo infantil. Outra versão deste pequeno jogo, partilhado alegremente entre os oito netos do meu avô, implicava em movimentos mais sutis, dos quais os alvos eram as formigas que marchavam enfileiradas à beira da piscina, e nos quais as armas eram as pequenas gotas – para as vítimas, terríveis avalanches em estado líquido – que pendiam das palmas de nossas mãos, cinicamente apontadas na direção das coitadinhas.

No chão desenhávamos com giz colorido duas classes distintas de amarelinha, devidamente categorizadas por nossa taxonomia pueril: 1. a amarelinha tradicional, que consistia numa sequência de três retângulos, sucedidos por um bloco de dois, e depois mais um retângulo, e outro bloco de dois, todos numerados de um a oito, determinando quando se deve pular com um pé apenas ou com os dois ao mesmo tempo, finalizando-se no Céu, onde deveríamos retornar para percorrer a amarelinha no sentido contrário; e 2. a amarelinha em espiral, onde os oito quadrados convergem, sob a forma de um caracol, na direção de um Céu central, ao qual o pulante chega após pular com um pé apenas durante todo o trajeto, que também deve ser repetido no sentido contrário. (Costumava me perguntar por que diabos aquela parte final da amarelinha se chamava Céu e me ocorriam explicações que caberiam na boca da minha professora de religião. No fundo, acho que se trata apenas de uma bela licença poética – o que, aliás, sempre vem bem a calhar nas brincadeiras de criança.)

Numa porção de chão próxima ao jardim francês que dá ares aristocráticos à frente da casa, ocupando uma área de cerca de um metro quadrado, há uma linda mandala que sempre me remeteu a princesas perdidas em algum palácio exótico, sequestradas por um xeique malvado fugido de As mil e uma noites, mantidas em cativeiro pela vigilância de uma sinuosa pantera negra. Eu gostava de me sentar ali, naquele pedaço de Oriente em pleno Rio de Janeiro, e confidenciar às formiguinhas – desta vez, minhas amigas – meus sonhos de princesa, elegantemente chorosa e refém, esperando para ser resgatada por um misterioso príncipe árabe, portando um turbante que deixasse entrever nada mais do que seus belos olhos amendoados, e montando a pelo um cavalo arredio e feroz. Para o meu azar, porém, as formigas guardavam mágoas: nem sequer se detinham para ouvir o que eu desejava lhes contar, ocupadas em seu fazer-alguma-coisa eterno. Tão minúsculas, retiravam-se e se vingavam da menina gigante que havia afogado suas irmãs, condenando-a a um retraído solilóquio.

*Foto: Carolina Baltar