domingo, 25 de julho de 2010

NASCIMENTO

Muito antes de nascer, fui nascida por outros. Sonharam-me, desejaram-me, conceberam-me, perguntaram-se se eu seria menino ou menina, porque não havia ultrassom naquela época, e souberam que eu seria menina quando minha tataravó de ascendência indígena, do alto dos seus 104 anos de idade, apalpou a barriga da minha mãe e garantiu que ela poderia comprar um enxoval cor-de-rosa.

Nasci numa clínica médica e asséptica, mas preferia ter nascido na casa velha do meu avô. Uma casa que, antes de ter os seus jardins cuidados pelas mãos dele, percorreu sólida os laços pregressos da minha família, de geração a geração, desde meados do século XIX. Até hoje, em cada canto da casa mora um espectro. (Quando criança, eu já sabia disso, o que justificava meu medo de ir ao banheiro sozinha no silêncio escuro da noite, percorrendo o longo corredor de quartos apagados e pisando a madeira rangente da sala de estar - onde mora atualmente, aliás, o fantasma do meu avô.)

Muito antes de nascer, fui nascida nessa casa, pois era lá que minhas avós brincavam, coleguinhas de escola. Brincavam de bonecas, de casinha, "o meu vai casar com a sua", sem saber que um anjo passava por ali e achou divertido transformar a fantasia infantil numa profecia encantada. E poucas décadas depois, naquela mesma casa, o filho de uma se enamorava da filha de outra, e elas duas, de amigas, seriam convertidas em membros de uma só família.

Eu preferia ter estourado a bolsa da minha mãe em pleno chão de taco, causando gritaria entre as minhas tias, acaloradas pelo sangue italiano: "Vai nascer! Vai nascer!". E uma delas sairia correndo para chamar a vizinha, uma senhora idosa e de baixa estatura, que contava com alguma experiência como parteira. Meu avô, embora médico, não teria coragem de manipular o sangue da própria filha. Ele se juntaria aos homens na sala, fumando, enquanto minha mãe gritaria suas dores no quarto azul. Eu chegaria ao mundo com alguma dificuldade, porque há de ser difícil esse momento em que é preciso respirar a vida por si só, pela primeira vez, sem a providência completa e infalível do ventre materno. Mas olharia em volta e veria a casa velha do meu avô, com meus olhinhos apertados de bebê, umedecidos pelo choro inaugural do nascimento. E o anjo viria sussurrar-me ao pé do ouvido: "Veja só, pequenina: nesta casa serão guardados os cacos da sua infância".

*Foto: Carolina Baltar

3 comentários:

  1. Oiiiiiiiiii, sou sua primeira seguidora !!!!!
    Estou orgulhosa desta sobrinha tão criativa e tão querida.
    Vovô lá no céu deve estar feliz com esta sua iniciativa.
    Mil beijocas....

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  2. Oi, irmã!
    Também adorei a sua iniciativa. Obrigada por mexer tão bem com nossas emoções.

    Bjs,
    Duda

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  3. Primona,
    Parabéns por trazer em palavras e imagens todas essas emoções que temos guardadas dentro de nós!!
    Te amo!!
    Bjus, Bernardo!

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